«Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança e narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: 'Não há mais que ver', sabia que não era assim. O fim de uma viagem é´apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.» José Saramago in 'Viagem a Portugal'.
Três mulheres, três personagens, leram este texto nos três diferentes locais onde aconteceram as leituras encenadas integradas no DiVaM, Domingo, dia 02 de Junho.
A primeira - Ana Gaspar - sentada de negro numa cadeira perto da entrada na Ermida de N. Sra. de Guadalupe, a segunda sentada - M. Conceição Gonçalves - de branco, dentro da cisterna na Mãe d'Água e a terceira - Joana Melo - à porta da Fortaleza, novamente de negro.
Quem partiu de viagem para a Fortaleza (os ciclistas), guiados por Susana de Medeiros e Reinhold Spielberger, antes de sair da Ermida de N. Sra. de Guadalupe, lavou as mãos, bebeu água e comeu amêndoas para se preparar para o caminho. Do interior da Ermida ecoava música antiga. Uma figura misteriosa, vestida de negro, permanecia junto a uma árvore.
Na primeira paragem no lugar onde está a cisterna que abasteceu de água, em tempos, a vila de Vila do Bispo, e ao qual atribuímos o nome Mãe d'Água neste projecto, uma das actrizes, Joana Melo, iniciou a sua leitura encenada. Num dos textos - o da terra - contou-nos : Aqui neste lugar entre lugares. Na equidistância entre dois pontos indefinidos escrevo-me, sou escrita. Se eu fosse uma casa...Talvez nela habitasse os nomes de todos os que aqui estiveram antes.(...)
Noutro - o da água - disse: Já as águas aqui presentes se movem, abastecendo lá em baixo a fonte. Novamente. Já a sede chegou à boca e a boca secou. As bocas pedem água. (...) desta presença que existe em cada um destes golos que agora bebem em estado líquido, em cada um há o mar e o evaporar, há a chuva a gotegar e a tempestade, há a fonte e foz. Há inundação e dilúvio. (...) Em cada cada golo há humidade. Há lágrimas salgadas. (...)
Os ciclistas rumaram à Fortaleza e depois de duas leituras encenadas à entrada da Fortaleza, uma delas sobre o fim do mundo, o promontório, com a proibição de pernoita no tempo dos gregos e dos romanos (M. Conceição Gonçalves) e de assistirem aos cânticos do coro que normalmente ensaia no Centro Cultural Comunitário de Almádena, ouviram excertos da Mensagem de Fernando Pessoa (Ana Gaspar).
Este projecto Viagens na Minha Terra - um passeio de bicicletas com Leituras Encenadas na Paisagem do Barlavento Algarvio foi organizado pela Tertúlia - Associação Sócio-Cultural de Aljezur no âmbito do programa DiVaM 2019 da D. R. da Cultura do Algarve.
Susana de Medeiros