Virgem Negro Ana André
Ermida de N. Srª. de Guadalupe 11 Junho a 02 Julho
“O trabalho de
pintura e de desenho requer uma preparação prévia. Conceptual e física-escolher
o assunto e o suporte.
A folha virgem-
sem contradição, sem mácula.
Negro-sem luz.
Noite.
A origem da imagem
é questionada, protegida do olhar alheio, o seu poder é tanto que não se pode
olhar longamente.
As superfícies têm
dimensões variadas, estão preparadas para dar uma boa aderência à tinta. As
marcas deixadas pelo processo de construção e preparação das superfícies são
parte das condicionantes, estruturam, estão presentes ao longo de todo o
processo e influenciam as decisões.
O projecto será
apresentado sobre a forma de livro. As folhas são superfícies de pintura
preparadas para receber o traço, o registo (ou o rasto) da paisagem. O livro é
a junção de várias superfícies, coladas,agrafadas, pintadas…mas não
definitivamente acabadas. A articulação entre as coisas é importante, pode ser
alterada, as folhas podem ser tiradas e recolocadas.
O que se vê e o
que não se vê são ambos partes importante. A relação entre cheio e vazio.”
Ana André
Maria Filomena
Moldera propósito de um texto de Walter Benjamin diz-nos: ‘O pintor, pelo seu
gesto de manchar, revela a visibilidade que a palavra permite e a mancha atrai,
isto é, há uma apetência da mancha pela forma. O pintor terá de descobrir a
palavra que convém à mancha(à língua que ela fala), ou melhor terá de ser
descoberto por ela,(…) deixando-se atravessar pela força da apresentação. (1)
Ana André
apresenta-nos um livro colocado no altar da Ermida de N. Srª de Guadalupe que
estando aberto ocupa todo o altar. Neste livro as páginas não apresentam
qualquer imagem e possuem diferentes tons de negros.
Ana André pensa
cada folha do livro como um negro virgem. O negro como o fundo da imagem que é
um começo, o começo de uma paisagem nocturna que cabe ao espectador imaginar. O
negro como o número zero da imagem.A tinta e forma como ela é aplicada é já por
si uma imagem. A forma como essa imagem se nos apresenta é que é diferente
colocando-nos a nós questões sobre como percepcionar a imagem.
Ana André
estabelece na sua intervenção na Ermida uma relação com o Mosteiro Real de
Santa Maria de Guadalupe na província de Cáceres. No séc. XIV é dada à Ordem
dos Jerónimos a igreja do santuárioonde se encontra exposta a imagem da Virgem negra
de N. Srª. de Guadalupe. Só nos é permitido ver a imagem de face negra alguns
minutos como se o seu poder fosse tanto que nos causasse dano olhá-la
longamente. Nesse mosteiro os monges copistas fabricavamlivros magnífica e pacientemente
manuscritos e,de tão grandes e pesados,impunha-setransportá-los com o auxílio
de rodas, livros com um tamanho fora da escala humana. Ana André, ao visitar o
Mosteiro, ficou fascinada com estes livros, guardados atrás de um vidro e numa semi-penumbra.
Segundo alguns
investigadores o culto mariano é uma transformação espontânea de cultos mais
remotos ligados à veneração da Terra Mãe.
No Egipto o culto
da deusa Isís está ligado às potências femininas que regem os vivos. Isís é um
símbolo do saber eterno que ata a consciência do Homem aos seus planos superiores
sendo recordada através da imagem da mãe celeste que amamenta o seu filho.
De acordo com
algumas fontes foi o Concílio de Éfeso, em 431, que deu início oficial
proclamando a virgem Santa e Mãe de Deus recebendo o nome de Theotokos. É através desta ideia de
maternidade divina que fará o seu caminho na devoção e na iconografia cristãs.
Na página do MNAC
a propósito da exposição de Patrícia Corrêa pode ler-se “Maria é um nome
próprio de origem incerta e um dos mais comuns no mundo inteiro. Para muitos um
nome bíblico, de forte conotação com o cristianismo, que deu origem ao culto
mariano numa construção teológica e devocional copiosa, tornando Maria na mãe
dos Cristãos, ícone de humildade, devoção, pureza, coragem e fé. Mas Maria é
também Madonna, (…)versão italiana de Minha Senhora, um termo de origem áulica,
isto é, reporta a senhora de origem cortesã, trabalhada pela poesia
trovadoresca.”
Mas voltemos à
pintura. Ana André utiliza habitualmente o médium da pintura. Poderíamos
imaginar que já se terá colocado a seguinte questão, uma e outra vez: ‘O que é
a pintura e como se deve pintar para que ela funcione como pintura?’
Poderíamos pensar
que estamos perante uma abordagem da imagem que nos remeteria para um conjunto
de questionamentos que pertencem à designada pintura abstractauma vez que a
artista nos apresenta um livro com páginas pintadas de negro mas não é isso que
se trata neste caso.
A pintura durante
vários séculos esteve ligada a uma expressão da criatividade e a uma crença na
genialidade do pintor.
Depois de 1960
começa a existir uma nova abordagem analítica da pintura que já não parte do
postulado que a pintura possui uma essência que se daria a conhecer. Num artigo
intitulado Radical Painting Johannes
Meinhart analisando a pintura abstracta diz-nos que para a Radical Painting de finais dos anos 70 e anos 80 “a pintura deveria
ser não figurativa, não icónica, ou seja, não deveria dar a ver qualquer imagem
ou sistema de signos; não deveria fazer referência a nada exterior a si
própria, não deveria mostrar nada para além de si própria. (…) Para a pintura
analítica a tinta, a matéria cromática, também não possuía qualquer valor
próprio (…) mas no entanto a tinta enquanto cor tornou-se uma qualidade última,
irredutível, mesmo se material e não-idealista. (…)”(2)
Perante a obra que
Ana André nos apresenta temos ‘a experiência qualitativa da cor, as complexas
interacções da percepção, sensação, experiência e cor na sua relação com o
suporte, o espaço, a sua própria matéria e o observador que a percepciona’ (…)(3)mas há um conteúdo semântico,
expressivo e significativo, afastando-a do posicionamento da pintura analítica.
Susana
de Medeiros
(1) MOLDER, Maria
Filomena, Matérias Sensíveis,Lisboa, Relógio d’Água, 1999
(2)(3)MEINHART,
Johannes, in Radical Painting,
Pintura:abstracção depois da abstracção, Fundação de Serralves&Público,
2005, pág. 86
Esta é a segunda
exposição do ciclo Derivas Continentais,
um projecto da autoria e produção de Susana de Medeiros e Conceição Gonçalves.
folha sala ana andre.docx
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